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S005c Setaro, Curso de cinema




index do verbete

1. cinema: narrativa e fábula

1. o cinema não se resume, apenas, ao elo semântico, mas a sua plenitude se estabelece pela conjunção entre o elo sintático (a linguagem, a maneira pela qual o realizador cinematográfico articula os elementos desta em função da explicitação do tema, do assunto) e o elo semântico (a significação em si).

2. a questão fundamental da narrativa e da fábula, sendo esta última compreendida com o que vulgarmente se convencionou chamar de enredo.

3. a maioria das pessoas que vai ao cinema apenas se contenta com a história, desconhecendo por completo que o cinema tem, também, uma narrativa, e esta se expressa pela capacidade do realizador em articular os elementos lingüísticos próprios da arte do filme.

4. a câmera intervém no plano da conotação sem, porém, modificar o plano da denotação. (há) sinais premonitórios lançados pela câmera através de seus movimentos alusivos. Se (...) o espectador, porém, que, somente atento à fábula (a história, a trama) não percebe o discurso cinematográfico, tem uma surpresa, por assim dizer, maior do que o espectador mais atento ao desenvolvimento da narrativa paralela ao da fábula. Por outro lado, este último tem a possibilidade de contemplação da poética cinematográfica e de sua especificidade lingüística. (...) É preciso apreender o comportamento que a câmera adota relativamente à personagem e não tanto seguir o comportamento de uma dada personagem na tela, pois, muitas vezes, a câmera não é cúmplice dos protagonistas nem solidária com eles, antes os corrigindo ou mesmo contradizendo. A câmera pode, em suma, intervir no plano da conotação sem, porém, modificar o plano da denotação.

5. Nos filmes dos grandes autores, (...) a narrativa tem preponderância sobre a fábula e, nestes casos, "é a câmera quem fala".

6. quando a câmera se movimenta nunca o faz de uma maneira indiferente. (...) nada impede que os movimentos de câmera se remetam para algo que se situa para além do conteúdo de determinado plano.

7. No cinema, a rigor, não existe texto dramático e encenação – aqui entendida esta com a que se estabelece no proscênio, mas e tão-somente, escrita e estilo – como acontece, aliás, no romance. Isto significa que um filme só se representa a si próprio, que o único tempo que importa é o tempo do filme, assim como a única personagem importante é o espectador, pois é na cabeça deste que se desenvolve toda a ação que é, precisamente, imaginada por ele, segundo fala Alain Robbe-Grillet. Em outras palavras: a coisa mais importante num filme não é a história mas o discurso, ou seja, o como e não o objeto da narrativa, resultando este do primeiro – e não vice-versa.

8. Narrativa e fábula. Se o verdadeiro acontecimento narrado pelo filme é o que se relaciona com o comportamento da própria linguagem fílmica – e não, como já se disse, o que se reporta ao comportamento dos protagonistas, torna-se imprescindível o discernimento, por parte daqueles que pretendem compreender e entender a arte do filme, entre o plano da fábula e o plano da narrativa.

9. O plano da fábula refere-se à coisa da narração – quer dizer, à história – e o plano da narrativa refere-se ao como – quer dizer, ao conjunto das modalidades de língua e de estilo que caracterizam o texto narrativo. De um lado, tem-se a story e, do outro o discourse, parafraseando Seymour Chatman. Assim, é evidente que o plano onde se torna necessário procurar a sua eventual poeticidade não é o plano da fábula-story mas, sim, o plano da narrativa-discourse.

10. em qualquer filme nascido com intenções artísticas o conteúdo serve sempre de pretexto à forma, entendendo-se por forma, esclareça-se, não a que em tempos idos foi definida como expressão da beleza, porém o modo como a obra se encontra organicamente estruturada do ponto de vista semântico. O que significa dizer: tanto no cinema como no romance, é o discurso que escolhe a fábula que lhe parece mais funcional.

2. elementos fundamentais da linguagem do cinema


11. Para se atingir a especificidade da linguagem cinematográfica, três são os elementos básicos, fundamentais, com os quais o realizador precisa saber articulá-los se quiser obter, no filme, força expressiva. São os elementos determinantes da especificidade da linguagem fílmica: a planificação, os movimentos de câmera e a angulação, havendo um quarto elemento, a montagem, que também determina a especificidade, ainda que, hoje, não possua mais a primazia do passado

12. a partir dos anos 50 e o advento da profundidade de campo (Orson Welles, William Wyler, etc) tiram da montagem a sua supremacia no processo de criação cinematográfica. Antes dos anos 40, porém, quando do seu auge, é necessário salientar que nem todos os filmes dessa época se submetiam à estética da montagem. Juntamente com a vanguarda francesa, o cinema soviético é, talvez, o único a levar a montagem a seu paroxismo, principalmente com os filmes de Serguei Eisenstein - O Encouraçado Potemkin, 1925, Outubro, 1927, etc.

13. O roteiro, texto escrito é, ainda, uma peça literária, uma pré-visualização do filme futuro.

14. A fotografia ajuda a compor e a melhor definir o estilo, algumas vezes com função dramática especial

15. o cinema também dispõe dos recursos do teatro e da literatura e ainda de um recurso próprio, importantíssimo, que é a variação do ponto do espaço de onde são fotografadas as imagens exibidas na tela. Chama-se variação do ângulo visual essa particularidade do cinema. O exemplo do espectador do teatro é ilustrativo: este, se quiser ter uma perspectiva diferente do palco, tem que mudar de lugar. No cinema, não, o espectador, ficando no mesmo assento, vê a cena de muitos modos diferentes, porque a câmera cinematográfica se encarrega de mudar de lugar - de ângulo - para ele.

16. Tudo o que se vê na tela - no enquadramento - é o que se chama de realidade profílmica: aquilo que se encontra no campo visual abarcado pela objetiva da câmera.

3. o quadro fílmico


17. Um cineasta, quando pretende fazer determinada tomada, escolhe um fragmento da realidade, recortando-o através do enquadramento, fixando uma parcela maior ou menor do campo visual. A parcela contida nos limites desse campo visual é o que se denomina quadro fílmico. No filme, o quadro fílmico é a área do fotograma. Na operação de filmagem, o campo da objetiva e, na projeção, a superfície da tela.

18. existem, na linguagem cinematográfica, os elementos determinantes - planos, movimentos de câmera, montagem - e os elementos componentes - fotografia, cenografia, som, música.

4. o plano.


19. Cada plano representa uma posição particular da câmera em relação aos objetos e pessoas que estão sendo filmados. E, como de um plano a outro a câmera tem que mudar de posição, o plano é considerado a unidade fundamental do filme.

20. o enquadramento possui um significado estático, enquanto unidade figurativa do filme, constituída pelo conjunto dos elementos humanos, cenográficos e plásticos, que figuram no quadro fílmico. Já plano tem um significado dinâmico enquanto unidade narrativa.

21. O tamanho do plano -e, conseqüentemente, seu nome e seu lugar na nomenclatura técnica - é determinado pela distância entre a câmera e o objeto filmado e pela duração focal da cena utilizada.

22. pg - plano geral (Long-Shot):


23. vê o ator de longe de corpo inteiro no conjunto do cenário, que pode ser observado nitidamente e que predomina na imagem. tem função atmosférica, localizando a ação e preparando o espectador para recebe-la. valoriza a paisagem como espaço físico e sugere uma comunhão psicológica entre os personagens e a natureza

23. pm - plano médio (Medium-Shot):


24. tem função descritiva, introduz as reações de um ator em correspondência com o ambiente e os atores que o cercam. Nele, nota-se um ou vários protagonistas de pé e, ainda, alguns pormenores do cenário podem ser vistos, mas estão esses pormenores, subordinados aos intérpretes. Mesmo quando aparece sentado, o ator preenche a tela de alto a baixo com o seu corpo. inscreve os indivíduos no espaço físico em que vivem e instaura um equilíbrio dramático entre a ação e o cenário

24. pa - plano americano (two-shot): Permite que se veja o ator dos joelhos para cima contra um cenário não obstrutivo, ficando, claramente delineados os gestos e o movimento do personagem. destaca os personagens em sua proximidade física e a intensidade de sua presença moral

25. pp - primeiro plano (close-up):


26. Destina-se a mostrar o rosto de um só ator ocupando a tela inteira. Se a montagem fraciona a totalidade do tempo, o primeiro plano fraciona a totalidade do espaço. instala a pujança do valor dramático e psicológico determinante

26. pd - plano de detalhe (big close-up): aparece somente a boca, os olhos, ou a parte de um objeto muito aumentado.

5. plano e tomada.


27. Cada filmagem de um plano qualquer é uma tomada. Tem-se uma tomada a partir do momento me que a câmera é acionada até o momento me que ela é desligada - no tradicional corta do diretor. Assim, a tomada é este fragmento de tempo entre o acionamento do registro e o seu término. A tomada pode variar quanto a seu tempo. Já o plano se caracteriza pela distância entre a câmera e o objeto filmado. É a unidade básica da obra cinematográfica.

28. Os planos se reúnem em cenas que, por sua vez, se reúnem em seqüências. Assim cenas se constituem de uma série de planos ligados a uma só ação ou situados num mesmo cenário. Já as seqüências contêm uma série de cenas.

6. movimentos de câmera


29. o resultado na tela é uma sucessão de dois planos articulados por uma descontinuidade chamada corte. O corte (cut) é o que caracteriza visualmente uma mudança de plano. Não é só pelo corte, no entanto, que se efetua uma mudança de plano. Como a câmera pode executar movimentos, deslocando-se suavemente durante a tomada, ela, a câmera, pode passar sem interrupção de um plano geral a um plano médio e deste ao close, bem como seguir o caminho inverso, aproximando-se ou afastando-se gradualmente da realidade profílmica. Tem-se,então, aqui, uma mudança contínua de planos.

30. O mais simples dos movimentos de câmera é a panorâmica (pannning), movimento no qual o aparelho, fixado em sua base, gira sobre si mesmo na direção horizontal (nos dois sentidos) ou na direção vertical.

31. A câmera pode, igualmente, ligar fatos pertencentes a diferentes dimensões temporais, prolongando-se numa outra panorâmica que evolui no mesmo sentido mas que se refere a um acontecimento ocorrido no passado e que se liga ao primeiro por meio de uma recordação neutra, invocada, através de um objeto de dupla referência espaço-temporal.

32. Há também uma panorâmica chamada circular, que, sobre ser mais complexa na sua execução, não é menos eficiente do ponto de vista da significação. Neste caso, a câmera observa à sua volta num ângulo de 360 graus, normalmente com motivos mais do que válidos.

33. o travelling, outro movimento de câmera importante que constitui fator dramático muito poderoso e pode ser feito para a frente (passagem de um plano geral para um close) ou para trás (passagem de um close para um plano geral).

34. Também, existe o travelling lateral, quando a câmera acompanha o andar de um ator, sem haver, propriamente, uma mudança de plano.

35. Cada ângulo de tomada implica uma posição afetiva ou intelectual. É, pois, impossível, uma objetividade absoluta no filme. Tudo é ressonância pessoal

7. ângulo de tomada


36. Outro elemento determinante da linguagem cinematográfica é o ângulo da câmera ou ângulo de tomada,

37. O aparelho de filmagem conserva-se, via de regra, na horizontal, quase ao nível da visão de um homem em pé.

38. É este o ângulo normal, mas se a câmera ocupar a posição de um homem olhando de alto de uma janela para a rua, tem-se o ângulo oblíquo superior, designado mais simplesmente por câmera alta (plongée). imagem vista de cima para baixo: a pessoa filmada parece humilhada e sofredora, comunicando aos espectadores uma sensação de esgotamento,

39. Inversamente, o ângulo oblíquo inferior é o ponto de vista de um homem deitado que olha para cima, designado pela expressão câmera baixa (contre-plongée). A imagem vista de baixo para cima (tomada com câmera baixa) confere ao ator um ar de importância, um ar dominador ou despótico. Caracteriza personagens prepotentes ou tirânicos, ou personagens que, num dado momento, estão em situação vantajosa em relação a outros

40. o conceito de ângulo visual, que é a perspectiva da cena vista pela câmera como se esta fosse o próprio olho do espectador. O ângulo visual é apenas o ponto de vista da câmera durante a tomada.

41. quase todos os filmes se utilizam do campo e do contracampo quando aparece, por exemplo, um casal conversando - ou duas pessoas dialogando. O campo e o contracampo se impõem quando duas tomadas sucessivas são feitas de ângulos visuais simétricos.

42. Recomenda-se a leitura de A Linguagem Cinematográfica, de Marcel Martin - Brasiliense, 1990,

8. a montagem


43. momento decisivo do processo de criação cinematográfica: a montagem. (...) A tarefa de ordenar os diversos fragmentos de um filme cabe a uma etapa do processo de criação do cinema muito importante, qual seja a montagem. Que, grosso modo, pode ser definida como o trabalho de reunir as partes do material filmado de acordo com a ordem estabelecido no roteiro.

44. A montagem, segundo a ótica de Bretton, preside a organização do real visando satisfazer simultaneamente a inteligência e a sensibilidade, provocando, com isso, a emoção artística, o efeito dramático ou onírico: faz malabarismos com o tempo e o espaço, com cenários e personagens (trucagens e dublês). É o elemento mais específico da linguagem cinematográfica, "o fundamento estético do filme", segundo Pudovkin.

45. Geralmente classifica-se os tipos de montagem em três categorias principais: (1) a montagem rítmica, (2) a montagem intelectual ou ideológica, (3) a montagem narrativa, sendo que esta última compreende quatro tipos - a) a montagem linear, (b) a montagem invertida, (c) a montagem alternada, e, (d) a montagem paralela.

46. A Montagem Rítmica:


47. visa criar ritmo ao filme, alternando os tempos fortes com os tempos fracos, dando ordem e proporção no espaço e no tempo. O ritmo resultado do movimento das imagens entre si e da convergência entre o movimento da atenção do espectador e o das imagens.

47. A Montagem Intelectual ou Ideológica:


48. operação com um objetivo mais ou menos descritivo que consiste em aproximar planos a fim de comunicar um ponto de vista, um sentimento ou um conteúdo ideológico ao espectador. Eisenstein escreveu na justificativa de sua montagem de atrações: "uma vez reunidos, dois fragmentos de filme de qualquer tipo combinam-se inevitavelmente em um novo conceito, em uma nova qualidade, que nasce, justamente, de sua justaposição (...) A montagem é a arte de exprimir ou dar significado através da relação de dois planos justapostos, de tal forma que esta justaposição dê origem à idéia ou exprima algo que não exista em nenhum dos dois planos separadamente. O conjunto é superior à soma das partes". A montagem ideológica consiste em dar da realidade uma visão reconstruída intelectualmente.

48. A montagem narrativa:


49. Utiliza-se para contar uma ação através da reunião de diversos fragmentos de realidade cuja sucessão se destina a formar uma tonalidade significativa. Há, nítida, nesse tipo de montagem, uma função eminentemente descritiva enquanto que os outros tipos de montagem acima referidos se distanciam do descritivismo para um domínio significativo mais criador.

49. Considerando-se que o tempo é a dimensão fundamental de qualquer narrativa, pode-se distinguir, quatro tipos de montagens narrativas: (a) a linear; (b) a invertida; (c) a alternada; (d) a paralela.

50. a) a montagem linear


51. - a vocação fabulista do espectador pede a linearidade - até mesmo por uma questão de deseducação cinematográfica e a pasteurização lingüística imposta, no gosto popular, pela indústria cultural cinematográfica. É a mais simples e mais clássica: uma única ação é exposta em uma sucessão de cenas dispostas umas após as outras numa ordem lógica e cronológica.

51. b) A montagem invertida


52. - o tempo é pulverizado algumas vezes e, na maioria, o filme é construído a partir de uma ou várias regressões ( flashback ).

52. c) A montagem alternada


53. - Baseia-se no paralelismo entre duas ou várias ações contemporâneas: imagens justapostas que mostram alternadamente personagens numa discussão, um perseguidor e um perseguido.

53. d) A montagem paralela


54. - Há confusão entre alguns teóricos entre montagem alternada e a montagem paralela. O exemplo do trem é de montagem alternada e não paralela. Há montagem paralela, um dos tipos de montagem narrativa, quando o realizador se baseia numa aproximação simbólica de várias ações com o objetivo de fazer surgir uma significação de sua justaposição. A simultaneidade temporal das várias ações não é absolutamente necessária.

9. tempo e diegese:


54. o paradoxo do tempo, segundo a Filosofia, reside na existência de dois passados: o passado que desapareceu e o passado que permanece como parte integrante do presente, gravado na memória e essencialmente criador.

55. A imagem cinematográfica também está sempre no presente, porque, fragmento da realidade exterior, ela se oferece ao presente da percepção e se inscreve no presente da consciência humana, sendo que a defasagem temporal se faz apenas pela intervenção do julgamento, o único capaz de colocar os acontecimentos como passados em relação ao espectador ou de determinar vários planos temporais na ação do filme.

56. Distinguem-se, no filme: o tempo real (ou o tempo físico: duração cronométrica da projeção); o tempo psicológico (duração subjetiva da fábula narrada: um dia, meses, anos); e o tempo dramático (ou narrativo: tempo verbal em que transcorre a história/fábula: presente, passado ou futuro).

57. A diegese refere-se a tudo que pertence, no processo intelectivo, à história contada no filme, ao mundo fabulístico sugerido ou pretendido pela ficção cinematográfica. A diegese, portanto, abarca o mundo ficcional apresentado pelo filme e tudo o que esse mundo implica, se fosse tomado como verdadeiro.

10. cinema e sua linguagem


58. Se o filme é um discurso orgânico e solidário nas suas partes é necessário aprender a lê-lo, após tantos anos em que se esteve habituado a vê-lo simplesmente.

59. A semelhança do cinema com a arte figurativa provoca um erro de apreciação, pois quem assim acha e procede não tem em conta a diferença funcional entre o enquadramento e o quadro. O que distingue de maneira radical o enquadramento do quadro é a presença, no primeiro, de uma dimensão dinâmica, porque a obra pictórica, o quadro, está encerrada em si mesma e exprime uma temporalidade subjetiva enquanto que o enquadramento fílmico só adquire sentido em relação aos enquadramentos que o antecedem e se lhe seguem na cadeia narrativa, exprimindo, portanto, uma temporalidade objetiva.

60. o cinema possui uma faculdade única e jamais reconhecida a qualquer outra arte: a de transformar o mundo em discurso servindo-se do próprio mundo. Do próprio mundo e não de sinais arbitrários (como faz a literatura ) ou semelhantes (como faz a pintura), empregados, estes sinais, em substituição do próprio mundo.

61. Num filme, aquilo que a retórica antiga chamava de elocutio tem individualmente menor importância do que a dispositio justamente porque os enquadramentos singulares não possuem autonomia, mas estão relacionados entre si no interior da seqüência e esta, dentro do contexto geral da obra cinematográfica.

62. (...) Estas noções provocaram diferentes formas de ditadura: a ditadura do enquadramento-signo – pela qual foram responsáveis os cineastas soviéticos dos anos 20, com Serguei Eisenstein à frente – e a ditadura do enquadramento-fato – camisa-de-força na qual se prenderam os exegetas mais acirrados do neo-realismo italiano do pós-guerra. Trata-se, aqui, de duas manifestações do imperialismo linguístico: no caso da primeira, a ditadura do enquadramento-signo, por causa de um excesso de abstração; no caso da segunda, a da ditadura do enquadramento-fato, por causa de um excesso de produção. Ambas podem ser redutíveis a uma substancial incompreensão da natureza alusiva do cinema.

11. cinema, verdade, imparcialidade


63. O enquadramento de uma parcela da realidade não é o signo convencional nem, também, a mimese perfeita do original, mas, pelo contrário, uma interpretação discreta.

64. é muito mais provável tornar crível na tela uma cena fictícia do que uma cena verdadeira.

65. A conotação sugestionante do enquadramento é determinado pelo caráter ambíguo da imagem fílmica, porque corresponde, de fato, o enquadramento, não à palavra mas à frase, embora se constituindo na partícula mínima da cadeia linguística. Presta-se, portanto, o enquadramento, a ser lido em vários níveis como uma expressão verbal suscetível de diversas interpretações, apesar de não infinitas, tendo em vista que a intencionalidade significante do cineasta realiza, apenas, uma escolha limitada entre a gama de sentidos possíveis.

66. a função precípua das linguagens artísticas é a de recriar o mundo e não copiá-lo nas suas aparências.

67. Desde os tempos da Poética de Aristóteles, a matéria da arte não deve ser o verdadeiro mais o verossímil. Esta, uma questão muito importante, pois o objeto da representação artística não deve ser aquilo que aconteceu, mas, sim, aquilo que poderá acontecer. (...) Assim, tem-se que somente a hipótese de partida é fruto de invenção. Todo o resto, depois desta definida, será aceito como perfeitamente crível, qualquer que seja a matéria da fábula e a sua adesão à realidade cotidiana. O importante, aqui, e ressalte-se isso, é que a narração, o discurso cinematográfico, seja coerente com as premissas e desenvolva com rigor as consequências nelas implícitas, sob pena de resultar forçada e com incongruências fatais para a legitimação da obra em sentido realista.

68. O filme procura corresponder às exigências da mitografia do que da historiografia, dizendo, basicamente o seguinte: “Se um dia se verificassem estas condições particulares, só poderia acontecer o que se verá dentro em pouco”. Mitografia, portanto, e não historiografia, já que o filme é uma linguagem artística que reconstrói o mundo servindo-se do próprio mundo ao contrário da literatura que reconstrói o mundo servindo-se de signos arbitrários, ou da pintura – que se serve de signos semelhantes.

12. romance filmado


69. O romance filmado é uma utopia. Havendo, como há, duas linguagens autônomas e especificas, como se pode efetuar a transferência da linguagem literária – signos verbais – para a linguagem cinematográfica – signos icônicos? De fato, quando ocorre a adaptação de uma obra literária para o cinema há, apenas, o aproveitamento da fábula, dos personagens, das situações, desaparecendo, com isso, a narrativa, considerando que o que faz o estilo de um escritor é sua capacidade de reger as palavras numa determinada sintaxe, e o estilo de um cineasta está na sua capacidade de manejar os elementos da linguagem fílmica – os planos, os movimentos de câmera, as angulações, a montagem etc.

13. tipos de narrativa

70. Narrativas de estrutura simples.

71. 1. Linear


72. . Este tipo de narrativa é percorrida por um único fio condutor que se desenvolve de maneira seqüencial do princípio ao fim sem complicações ou desvios do caminho traçado. Este esquema da narrativa linear repete ao pé da letra o que era a estrutura base do romance psicológico do século XIX. Incluem-se nesse tipo de narrativa aquela nas quais o elemento poético e metafórico é reduzido ao mínimo e os motivos de interesse residem exclusivamente na fábula (story).

72. 2. Narrativa binária.


73. Este tipo de narrativa é percorrida por dois fios condutores a reger a ação como só acontece nos casos de narrativas paralelas baseada na coexistência de duas ações que podem entrecruzar-se ou manter-se distintas. Garantia certa de tensão dramática, a binária é empregada em fitas de ação – thrillers, westerns, etc – porque valoriza o paralelismo e o simultaneismo.

73. 3. Narrativa circular.


74. Este tipo de narrativa tem lugar quando o final reencontra o início de tal modo que o arco narrativo acaba por formar um círculo fechado. É menos frequente e mais ligada a intenções poéticas precisas com um propósito de oferecer uma significação da natureza insolúvel do conflito de partida e denota a desconfiança em qualquer tentativa para superar a contradição assumida como motor dramático do filme. A significação implícita a este gênero de escolha estrutural poderia ser: “as mesmas coisas repetem-se”.

74. Narrativas de estrutura complexa


75. estão: a estrutura de inserção, a estrutura fragmentada e a estrutura polifônica.

75. (a) Narrativa de inserção.


76. Consiste numa justaposição de planos pertencentes a ordens espaciais ou temporais diferentes cujo objetivo é gerar uma espécie de representação simultânea de acontecimentos subtraídos a qualquer relação de causalidade. Os segmentos narrativos individuais interatuam entre si, produzindo, com isso, uma complicação ao nível dos significantes que potencializa o sentido global do discurso.

76. (b) Narrativa fragmentária.


77. Estrutura-se pela acumulação desorganizada de materiais de proveniência diversa, segundo um procedimento análogo ao que, em pintura, é conhecida pelo nome de colagem, A unidade, aqui, não é dado pela presença de um fio narrativo reconhecível, porém pelo ótica que preside à seleção e representação dos fragmentos da realidade. Se, neste caso, da narrativa fragmentária, a intenção oratória do cineasta prevalece sobre a fabulatória, mais acertado seria considerar o filme como um ensaio do que um filme como narrativa.

77. (c) Narrativa polifônica.


78. Estrutura-se pelo número de ações apresentadas que confere uma feição coral à narrativa, impedindo-a de afirmar-se de um ponto de vista que não seja o do realizador-narrador. Os acontecimentos que se entrelaçam são múltiplos, dando a impressão de um afresco, que se forma pelas situações captadas quase a vol d’oiseau.

78. As estruturas examinadas são todas elas do tipo fechado: servem de suporte à narrativas concluídas do ponto de vista de seu desenvolvimento, não importando o seu significado poético. Existem, no entanto, casos de estruturas abertas, nas quais a conclusão do discurso é deixada em suspenso ou então prolongada para além do filme. O que caracteriza a obra cinematográfica como um trabalho em devir, um filme que busca ainda o seu desfecho ou, então, como um texto que se oferece à meditação do espectador.

14. lugares narrativos da fábula


79. Se a narrativa possui as suas estruturas-tipo, a fábula também se apresenta sob a forma de lugares narrativos bem reconhecíveis. Aparentemente, na multiplicidade das construções narrativas, esconde se apenas um número limitado e repetido de situações dramáticas. (...) um mecanismo redutor que faça esclarecer os arquétipos do gênero fabulístico. Com maior frequência, quatro são os mais utilizados lugares narrativos na fábula: a viagem, a educação sentimental, a investigação, e o elemento deflagrador.

80. (1) A viagem.


81. É o topos – configurações que o material narrável adota no plano da dispositio – que ostenta os mais ilustres precedentes, a começar pela Odisséia. o cinema que sempre mostrou uma predileção particular por histórias tendo por tema a descrição de um itinerário físico durante o qual, entre mil dificuldades e imprevistos, o protagonista passa de um estado de ignorância a um estado de conhecimento. Ou, como se pode também dizer: do pecado à salvação. A viagem é pontuada por etapas que se constituem em estações de um percurso interior que conduz do Erro inicial à Verdade final.

81. Variante do topos é o motivo da fuga que, sendo semelhante ao precedente, se distingue dele por uma maior funcionalidade crítica. A fuga pode ser devida a razões externas ou a razões interiores de natureza existencial.

82. (2) A educação sentimental.


83. Se nos topos da viagem o desenvolvimento narrativo se faz no espaço, tem-se, na educação sentimental, um desenrolar-se no tempo. A tomada de consciência opera-se graças a um itinerário que já não é mais horizontal mas vertical, considerando-se que neste topos se se reporta aos fenômenos psicológicos ligados à passagem de uma idade do homem para outra. O arco de tempo analisado pode ser mais ou menos longo consoante a quantidade e a qualidade das experiências narradas pela fábula.

83. (3) A investigação.


84. Baseia-se na reconstrução a posteriori de um acontecimento obscuro sobre o qual há que fazer luz. Os instrumentos utilizados podem ser os clássicos da investigação policial ou os mais recentes do inquérito jornalístico ou, se se quiser, cinematográficos. O móbil comum revelador é apreendido por meio de fragmentos soltos que, organizados, propõem o denominador comum. A fábula apresenta-se, aqui, como o lugar da desordem que tende a encontrar a sua explicação unitária para além da aparente casualidade dos acontecimentos descritos.

84. (4) O elemento deflagrador.


85. Talvez não se possa definir o elemento deflagrador como um lugar narrativo da fábula mas é uma constante e uma presença marcante nos arquétipos da narrativa. Trata-se do elemento que vem de longe e deflagra, com sua aparição, um processo de transformação no meio social no qual se intromete.

15. metalinguagem


85. O que acontece se uma narração fílmica tiver por objeto não uma história passada na realidade mas uma história narrada pelo cinema? É a metalinguagem: um filme que fala de outro filme. Cinema metanarrativo, portanto e, neste caso, faz-se necessária atenção para distinguir a narrativa relativa ao filme a que se está a assistir da narrativa relativa ao filme contado pelo primeiro. Trata-se, aqui, de uma espécie, por assim dizer, de narração ao quadrado, procurando não confundir nela o que é ficção do primeiro grau e o que é ficção do segundo grau.
ENCYCLOPAEDIA V. 51-0 (11/04/2016, 10h24m.), com 2567 verbetes e 2173 imagens.
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